O Assunto — "O avanço do Projeto Antifacção"
Podcast: O Assunto (G1)
Data: 24 de novembro de 2025
Host: Natuza Nery
Convidados:
- Pedro Figueiredo (repórter da TV Globo e Globonews no Congresso Nacional)
- Roberto Shoa (conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ex-policial federal e pesquisador da Universidade de Coimbra)
Visão Geral do Episódio
Neste episódio, Natuza Nery aprofunda os debates ao redor do chamado Projeto Antifacção, recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados em meio a tensas negociações entre governo e oposição. O episódio foca na tramitação atribulada do projeto, nas divergências profundas entre as versões discutidas, nos riscos e potenciais impactos jurídicos, institucionais e sociais da nova legislação, bem como na expectativa para a próxima fase no Senado. A análise conta com o olhar detalhado de um repórter político e de um especialista em segurança pública que trazem múltiplos ângulos — político, técnico, prático e sociológico.
Principais Tópicos e Discussões
1. Origem e Tramitação do Projeto Antifacção
- O projeto nasceu no Executivo, mas teve seu conteúdo amplamente alterado e "apropriado" pela oposição durante tramitação na Câmara (00:44).
- Divergências políticas: O governo tentou retirar o projeto de pauta e votou contra sua própria proposta devido às modificações consideradas prejudiciais (00:18, 03:04, 13:42).
- O relator, deputado Guilherme Derrite, foi escolhido em movimento estratégico criticado pelo governo pelo viés político e agilidade questionável no processo (04:16–06:55, 11:34–11:53).
Notáveis
"O projeto aumenta penas, cria novos tipos penais, amplia mecanismos de investigação e estabelece regras especiais para líderes de facções. Agora, a discussão será no Senado."
— Natuza Nery, 01:55
2. Mudanças no Texto e Embates Entre Governo e Oposição
- O texto aprovado equipara crimes de facções a terrorismo (ideia retirada diante de críticas), aumenta penas, cria novos tipos penais como "domínio social estruturado", dificulta progressão de pena, permite compartilhamento de bens apreendidos entre PF e polícias civis, entre outras medidas (06:55–09:57, 27:17–29:05).
- O governo argumenta que mudanças retiram recursos da Polícia Federal e podem facilitar manobras jurídicas para líderes de facções, fragilizando o combate ao crime (07:48–08:44, 22:57–24:09).
Notáveis
"Ela facilita a vida dos líderes do crime organizado e asfixia financeiramente a Polícia Federal e fragiliza as operações de fronteira da aduana que é da Receita Federal."
— Roberto Shoa (citando argumentos do governo), 08:01
"Há muita gente tentando distorcer os avanços do projeto."
— Hugo Motta, presidente da Câmara, 08:57
3. Críticas ao Processo de Tramitação e Falta de Debate
- Projeto tramitou de forma acelerada, sem audiências públicas ou amplo debate, o que gerou incômodo até entre a oposição (09:57–13:35, 18:43–20:20).
- Houve seis versões do relatório, gerando confusão e falta de tempo hábil para compreensão dos textos apresentados (12:48, 18:43).
Notáveis
"Num caso como esse, não faz o andamento esperado e necessário para a discussão de uma medida de tamanho e fortaleza para o Brasil. O que era esperado era que esse processo passasse por comissões, onde haveriam audiências públicas, com participação da sociedade civil, estudiosos sob o tema, integrantes de forças de segurança pública, entidade do terceiro setor..."
— Roberto Shoa, 18:43
4. Pontos Centrais de Discordância
- Financiamento da PF:
O texto aprovado redistribui recursos dos fundos de apreensão, potencialmente reduzindo verbas da Polícia Federal (07:48, 22:17–24:09). - Perdimento de Bens:
O projeto do governo previa perda rápida dos bens de facções; o novo texto adiciona etapas processuais, gerando dúvida sobre eficácia (20:20–22:17). - Critérios para Integração a Facção:
Preocupação com critérios pouco claros para inclusão de nomes em bancos de dados nacionais e risco de criminalização em massa de populações periféricas (30:27–33:27). - Progressão de Penas:
O relatório dificulta progressão de penas, o que pode contribuir para superlotação carcerária e fortalecimento das facções nos presídios (33:27–34:39). - Domínio Social Estruturado:
Nova tipificação penal visa enquadrar organizações ultra-violentas, mas pode ser usada para criminalizar protestos populares (27:17–29:05).
Notáveis
"Esse ato, mesmo sem a pessoa fazer parte da organização criminosa, poderia ser punido com pena mínima de 12 anos, uma pena mínima equivalente a um homicídio qualificado. Eu acho que isso é perigoso, eu acho que isso precisa ser discutido..."
— Roberto Shoa, 29:05
5. Perspectivas para o Senado
- Relatoria ficará com Alessandro Vieira (MDB), visto como técnico e aberto ao diálogo (02:16–02:56, 15:31-16:51).
- O Senado promete audiências públicas com especialistas e discussões mais profundas — expectativa de que pontos polêmicos sejam corrigidos (15:31–16:51).
- Mudanças exigirão retorno do texto à Câmara e risco de veto presidencial permanece caso divergências persistam (02:56–03:04, 16:51–18:01).
Notáveis
"O mérito completo daquilo que foi aprovado pelos deputados vai ser preservado pelo Senado. O que se espera dele é que Alessandro Vieira é um nome bem de centro, ele não é próximo da esquerda, mas tem diálogo e também não é próximo da direita..."
— Pedro Figueiredo, 16:50
6. Análise de Impacto no Combate ao Crime Organizado
- Shoa reforça a importância de sufocar financeiramente as facções, mas critica risco de judicialização morosa e encarceramento em massa sem atacar o verdadeiro núcleo econômico das organizações (20:34–22:17, 33:27–34:39).
- O temor é de uso desproporcional dessas novas ferramentas contra populações pobres, enquanto elite do crime permanece relativamente intocada (31:10–33:27).
Notáveis
"É muito fácil classificar como integrante ou pertencente a uma facção criminosa aquela pessoa pobre, preta, da periferia... enquanto essa massa da periferia vai pegar penas de meio século."
— Roberto Shoa, 32:00
7. Diálogo Entre Segurança Pública e Academia
- Roberto Shoa narra sua trajetória entre polícia e pesquisa acadêmica, argumentando ser fundamental que o debate reúna especialistas dos dois mundos, unidos para uma reforma estrutural do sistema de segurança pública (34:39–37:09).
Notáveis
"O especialista sabe sobre segurança pública. O profissional de segurança pública também sabe sobre segurança pública. Um não exclui o outro. E quando esses dois se encontram, isso é essencial."
— Roberto Shoa, 36:45
8. Erros Históricos de Esquerda e Direita em Segurança Pública
- Shoa critica a esquerda por não acolher o agente de segurança e a direita por tratar esses profissionais como guerreiros inquestionáveis; ambos os enfoques desumanizam e instrumentalizam o policial (37:09–39:31).
Notáveis
"A esquerda... nunca olhou para o profissional de segurança pública. [...] E já a direita acha que esse profissional é um super-herói, que ele é uma máquina de destruição [...] O que esse profissional quer é ser visto enquanto um servidor..."
— Roberto Shoa, 37:25
Timestamps de Segmentos Importantes
- Aprovação na Câmara e isolamento do governo: 00:18–01:03
- Mudanças no texto e visão do relator: 01:44–02:16, 06:55–07:48
- Relato da tramitação e polêmicas: 04:16–09:57
- Críticas ao processo e falta de debate: 11:22–13:35, 18:43–20:20
- Detalle de mudanças críticas (PF, perdimento de bens): 20:20–24:09
- Novo tipo penal — domínio social estruturado: 27:17–29:05
- Banco de dados nacional sobre facções: 30:27–33:27
- Impacto social e risco de encarceramento em massa: 33:27–34:39
- Análise sobre relação academia x polícia: 34:39–37:09
- Crítica a erros históricos de esquerda e direita: 37:09–39:31
Frases de Destaque
- "[O governo] considera que isso vai dificultar muito a aplicação da lei penal." — Gleisi Hoffmann (ministra da Articulação Política), 01:03
- "O que Derritte faz é que nas primeiras horas, uma, duas horas depois de seu nome ser anunciado, ele já entrega um relatório. Isso chama a atenção de todo mundo porque prova que não houve debate." — Pedro Figueiredo, 11:34
- "O problema financeiro e orçamentário da Polícia Federal não é algo novo [...] A Polícia Federal precisa, sim, ser melhor equipada, precisa ser melhor financiada." — Roberto Shoa, 22:57–24:09
- "O banco de dados é uma ideia boa, é o que qualifica a pessoa entrar naquele banco de dados, o que qualifica as condições para a entrada no banco de dados." — Natuza Nery, 33:10
Resumo Final
"O avanço do Projeto Antifacção" revela a complexidade e as controvérsias que cercam o enfrentamento legislativo ao crime organizado no Brasil. O episódio expõe tensões político-partidárias, escolhas apressadas e riscos de aprofundamento em modelos já conhecidos de repressão e encarceramento em massa, ao passo que setores do governo e especialistas defendem ajustes para que a lei seja eficaz, justa e realmente enfrente as estruturas econômicas das facções. O reexame do texto no Senado é visto como crucial para aparar arestas técnicas e salvaguardar direitos, enquanto o episódio evidencia uma lição para o debate público: segurança pública eficaz depende de diálogo franco, ampla escuta e desenho institucional que vá além dos impulsos punitivistas ou da instrumentalização política.
